rui sousa
Joined: 13 Dec 2006 Posts: 1203 Location: Nasci no Porto mas vivo em Lisboa
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Posted: Wed Nov 26, 2014 11:02 pm Post subject: Sem Sombra de Pecado |
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Sem Sombra de Pecado - José Fonseca e Costa [1983]
Quote: | Já aqui falámos sobre Balada da Praia dos Cães, um dos filmes mais célebres de José Fonseca e Costa. E nesta edição vamos descobrir um outro filme do realizador, que se revelou também um considerável êxito no ano em que estreou no nosso país. Sem Sombra de Pecado baseia-se no conto E aos Costumes Disse Nada, integrado no livro Gaivotas em Terra, de David Mourão-Ferreira, e recebeu vários prémios em festivais nacionais e internacionais, tendo sido, também, selecionado para a Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes.
Foi ainda o filme escolhido para representar Portugal na categoria de Melhor Filme Estrangeiro nos Oscars de 1984, mas não chegou à fase das nomeações. E vale a pena referir que este filme destaca-se igualmente por ser um dos primeiros trabalhos de Eduardo Serra, diretor de fotografia que, hoje, é reconhecido em todo o mundo, colaborando com diversos realizadores estrangeiros, numa carreira que já lhe valeu duas nomeações para os prémios da Academia. Há que elogiar, por fim, o trabalho de cenografia de Jasmim de Matos, que trabalhou com Fonseca e Costa em outros filmes, como Os Demónios de Alcácer Quibir e Kilas, o Mau da Fita.
É uma história de amor em tempo de guerra e ditadura, protagonizada pelo brilhante Mário Viegas, numa sátira acutilante a Portugal e aos portugueses: uma mulher misteriosa (Vitória Abril), qual femme fatale dos filmes noir, começa a fazer chamadas estranhas para o quartel onde Henrique (Viegas) se encontra a fazer o serviço militar. Ela é uma jovem oriunda de famílias abastadas, e que começa a levar o homem – e supostamente, sem ter razão para tal – a alinhar em encontros obscuros, que trarão uma série conflitos e contradições a cada uma das personagens. Mas a mulher nunca perde o seu lado enigmático, e, aliás, é a dúvida sobre a sua identidade (ou as suas intenções) que salta na mente do espectador a cada momento, até ao surpreendente (e subtilmente filmado) desenlace da narrativa.
E assim, Sem Sombra de Pecado constrói-se nesta duplicidade de situações: a do romance, a da realidade militar (um alvo de paródia constante, quer na hierarquia que a constitui, quer nos elementos que a compõem)… e será que haverá mais uma? Há pois: a do mistério que rodeia o filme, o das origens da mulher que tanta obsessão suscita no protagonista. E talvez essa história tenha poder suficiente para criar um universo à parte, próprio, que conseguimos distinguir facilmente – e que nos suscita fascínio e desprezo ao mesmo tempo. É esse o grande triunfo de José Fonseca e Costa, e do argumento da sua autoria, que consiste na criação de uma estrutura clássica de história cinematográfica, que culmina num ponto-chave e que se torna numa incrível reviravolta para tudo o que vimos antes – e para a acérrima crítica de costumes feita até então, dentro e fora do quartel.
Apesar de possuir várias falhas na sua consistência (por vezes sentimos um enorme desequilíbrio entre as partes interessantes da história e as cenas que pouco ou nada adicionam à experiência visual que estamos a presenciar), Sem Sombra de Pecado é um filme notável pela conceção de “filme de época” que é posto em prática, com uma elegância e vivacidade que conseguiram captar, com grandiosidade, o espírito de uma Lisboa reprimida, mas pitoresca. E este é um título que merece destaque por ser uma obra com cariz… comercial. Sim, e na época revelou-se um considerável êxito de bilheteira, tal como outros filmes de Fonseca e Costa (sendo o Kilas o caso mais emblemático).
De facto, há uma grande diferença entre o cinema dito popular deste cineasta e o de muitos outros que, hoje, tentam apenas receber o lucro proveniente de projetos mal pensados e concebidos, que tratam o espectador como lixo. Conseguimos distinguir, no trabalho do realizador, uma matriz visual muito bem desenvolvida, ao mesmo tempo que utiliza as características das personagens, e como se pode constatar ao ver o filme (que está, desde há alguns meses, finalmente disponível em DVD, numa belíssima cópia restaurada), é que sentimos, com projetos deste calibre, que se tinha um objetivo em mente, que era o de suscitar algo na audiência, e ir para além do tom ligeiro como é caracterizado, mais vulgarmente, o cinema mainstream, de massas, com pipoca ou não a condizer.
E é isso que faz com que Sem Sombra de Pecado saia vencedor, e é por isso que, ainda hoje, mais de três décadas depois da estreia, permanece um interessantíssimo exemplar do cinema português, que grande parte da nova geração desconhece. José Fonseca e Costa foi homenageado na última edição dos Prémios Sophia – e é, “sem sombra” de dúvida, um realizador marcante na História do cinema nacional dos últimos 40 anos, goste-se ou não deste filme, e dos outros. Há que elogiar a versatilidade de um cineasta que parece revelar uma outra face em cada uma das histórias que conta: seja com a “chungaria” do Kilas, seja com o retrato negro da PIDE com a Balada, seja, ainda com este filme misterioso, que calcorreia Lisboa e os sentimentos de uma personagem ingénua, aproveitando-se dele e de nós com um descaramento que lhe permite enviar uma espécie de “bofetada” no final. Mais um tesouro escondido à espera de ser descoberto.
7.5/10 |
Texto escrito para a rubrica "Hollywood, tens cá disto?", no Espalha-Factos: http://www.espalhafactos.com/2014/11/25/hollywood-tens-ca-disto-sem-sombra-de-pecado-1983/ _________________ À Beira do Abismo
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