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rui sousa



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PostPosted: Sun Nov 16, 2014 12:55 pm    Post subject: Reply with quote



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Nightcrawler – Repórter na Noite: o lado negro e obsessivo dos media

É uma reflexão cínica e sarcástica sobre a eterna relação entre a comunicação social e o sensacionalismo, onde encontramos Jake Gyllenhaal num dos papéis mais surpreendentes da sua carreira. Nightcrawler é uma das estreias da semana e, também, um dos filmes mais interessantes e intrigantes destes meses finais de 2014.

Nightcrawler – Repórter na Noite é a história de um zé-ninguém que se move por um desejo de ascensão, feita por qualquer meio, via, ou intenção profissional. Devido a uma pequena coincidência do quotidiano, Lou Bloom (Gyllenhaal) encontra a solução para o desespero que povoa a sua vida miserável, ao descobrir o estranho, obscuro e competitivo mundo do jornalismo freelancer noturno, em que indivíduos andam à caça de acidentes de viação, assassínios ou desastres de qualquer outra índole, para que possam ser filmados com o objetivo de, pouco tempo depois, serem vendidos à estação televisiva que fizer a melhor oferta. Mas o que começou por ser uma pequena brincadeira torna-se num monstro de enormes proporções, tal como Bloom se vai transformando num ambicioso manipulador, sedento de poder e mediatismo nos bastidores do pequeno ecrã, utilizando o sensacionalismo das histórias que vende para subir no topo da “hierarquia”.

O filme desenrola-se num périplo em busca das imagens mais sensacionais, num retrato irónico (e até sádico, em certos momentos mais decisivos da narrativa) do lado irracional e incontrolável dos meios de comunicação social, dominados por uma cultura de violência, em que estes jornalistas em particular têm, como principal papel, o de transmitir novas doses que permitam saciar o público dessa fome diária de choque, provocada pelo drama, o horror e a tragédia mundanas. E em parte, Nightcrawler faz-nos lembrar Sidney Lumet e o seu Network – Escândalo na TV e o sarcasmo inesquecível que polvilhava a sua história e a crítica maliciosa feita ao lado comercial da transmissão de notícias.

Mas as semelhanças entre este filme (primeiro trabalho de realização de Dan Gilroy) e a clássica metáfora desconcertante de Lumet ficam por aqui. Até porque Nightcrawler segue um caminho diferente, que demonstra ser ainda mais acertado para o nosso tempo – e por sinal, mais revelador da densidade dos defeitos da condição humana nestas situações de sobrevivência do mais forte, de competição sem precedentes e de conquistas desmedidas por um lugar na sociedade, e nos seus rígidos (e ao mesmo tempo, perversos) códigos de linguagem e atuação próprios. Até porque o protagonista aproveita o jogo manhoso criado pela Internet e pelas novas tecnologias, que reforçam o lado individualista da sua ascensão profissional, o que o leva a atingir, com fácil perspicácia, patamares escondidos de conhecimento daquele mundo noticioso que fazem com que consiga atingir a sua meta de uma maneira velozmente eficaz, e também, surpreendentemente cruel, fria, desprovida de valores éticos… e claro, de humanidade.

Porque a ambição de Lou é a eterna dominação do Mal sobre a banalidade do dia a dia, acompanhada pelo desejo de se ser Outro num mundo repleto de nadas e desinteresse pelo próximo. E é por isso que, enquanto encontramos neste anti herói uma certa recuperação das características das personagens de vários inesquecíveis films-noir, observamos também uma subtil construção tragicómica (e não menos clássica) do seu caráter. Eis, assim, a chave essencial para compreender o verdadeiro significado de Nightcrawler: o truque de “magia” que envolve a perceção da realidade e os oportunismos que se podem gerar à volta dela e dos seus múltiplos e (aparentemente) inesgotáveis recursos noticiosos (à falta de algo novo, o público contentar-se-á, decerto, em ouvir histórias sensacionalistas com moldes já conhecidos – até porque parece que o gosto das massas se tem revelado cada vez mais repetitivo e viciosamente cíclico).

Com uma estrutura cinematográfica simples (mas que não perde em nada a originalidade do seu conteúdo, tão bem manejado pelos atores que o interpretam – e acima de tudo, pelo magistral Jake Gyllenhaal), o filme revela-se uma entusiasmante surpresa pela forma como Dan Gilroy evitou utilizar técnicas desajustadas às intenções da trama e do aspeto visual necessário que lhe atribui um significado especial. Mas Nightcrawler assenta, principalmente, nesse protagonista que, a cada cena, se revela menos plastificado, falso e risível, uma ideia que é dada a entender pelo preâmbulo e pelo olhar meio alucinado, meio vazio de Gyllenhaal, e que rapidamente esquecemos, à medida que desmascaramos cada vez mais esta figura, protegida por um manto de inteligente ingenuidade que o ajudará a mover-se melhor no meio que tanto anseia conhecer a fundo e, talvez num futuro próximo, comandar. Mas à frente de cada vitória encontra-se sempre uma queda vertiginosa… talvez não sabemos é sempre adivinhar quais serão as dimensões, ou alvos, ou reviravoltas, que essa queda poderá originar.

Com a hipocrisia e a alienação de um sistema noticioso que, ao contrário de todas as tendências de opinião, continua a obter um enorme poder no mundo da comunicação, Nightcrawler desvenda-se, aos olhos do espectador, como um espelho dos problemas que, desde sempre, regulam e movem as sociedades. Sociedades essas em que os extremos levam a que se tomem decisões insensatas em virtude do Ter, do Poder e do Destruir tudo e todos, sem olhar a consequências – que, mesmo que sejam boas para os autores da “desgraça”, auxiliam a manter uma “ordem natural das coisas” que continuará sempre a ser desordenada e caótica. Um fenomenal exercício de dissecação da sensação de grandeza proporcionada pela pequenez humana, e acima de tudo, um filme sensacional sobre o sensacionalismo.

9/10


http://www.espalhafactos.com/2014/11/13/nightcrawler-reporter-na-noite-o-lado-negro-e-obsessivo-dos-media/
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rui sousa



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PostPosted: Thu Nov 20, 2014 10:29 pm    Post subject: Reply with quote



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A Viagem a Itália: pratos deliciosos e gargalhadas imparáveis

Depois do sucesso da primeira viagem, filmada em 2010 para a televisão e para o cinema, Rob Brydon e Steve Coogan decidiram repetir a fórmula. E o resultado volta a ser incrível, neste grandioso passeio por Itália, onde apreciam a sua gastronomia e a vivência das suas gentes… e desenvolvem, também, mais uma série de conversas hilariantes, sobre tudo e mais alguma coisa.

Seis refeições em seis locais diferentes, espalhados por Itália: eis o ponto de partida para uma viagem protagonizada pelos comediantes Rob Brydon e Steve Coogan. Entre monumentos, lindíssimas paisagens naturais e o contacto com mulheres italianas, os dois amigos falam. À mesa, no carro, em passeio… e aí está o cerne desta Viagem a Itália – porque os pratos passam para segundo plano, tal como um certo lado mais documental que tenta explorar, através das imagens, os lugares mais inesquecíveis do país. É nos disparates de Brydon e Coogan e na cumplicidade que têm entre si que está o mote deste filme, atribuindo-lhe um tom hilariante que se transforma através de mecanismos simples (e em parte, improvisados) para fazer as delícias de qualquer espectador.

Numa era em que a televisão parece querer ocupar à força o lugar do cinema, – porque o cinema não tem, ou não quer ter, forças suficientes para se distanciar dos modelos televisivos, aproximando-se inevitavelmente, e cada vez mais, desse outro ecrã, torna-se interessante analisar um caso de sucesso como este. Elaborado para ambos os formatos (os dois filmes são compactos de duas minisséries que passaram originalmente na BBC), A Viagem a Itália é o resultado de uma seleção criteriosa dos momentos mais memoráveis deste reencontro entre Rob Brydon e Steve Coogan, num périplo gastronómico que vive dos engraçadíssimos momentos de conversa entre os dois artistas.

Este é um caso curioso porque se trata de uma ideia que funciona perfeitamente nos dois ecrãs. E mesmo que a realização de Michael Winterbottom sirva, apenas, para mostrar a história e acompanhá-la delicadamente com os ambientes que a envolvem, esta faz com que não nos deixemos, por isso, de distrair do essencial – que é essa tal química entre os dois protagonistas, que origina diálogos inesquecíveis, numa sucessão de risos e gargalhadas como raramente conseguiria ser possível obter através de uma obra com estas características. E, por isso tudo, o resto consegue funcionar muito bem no filme, e faz com que este mereça ser visto numa sala de maiores dimensões do que aquela que temos em nossa casa. Até porque será muito pouco provável que a série original (possui mais uma hora) chegue algum dia a Portugal.

E se a comida se torna num elemento secundário (e quase, diga-se, figurativo) neste périplo alimentar que é também uma história singular de amizade (e das diferenças entre gerações), acabando por ser o simples e milenar ato da conversa aquilo que realmente nos interessa e que nos puxa para acompanhar os desenvolvimentos do filme (numa sucessão de discussões que englobam temas variados, como imitações de Michael Caine, até uma análise profunda dos melhores métodos de canibalismo). A Viagem a Itália é, assim, uma deliciosa jornada filosófica, adepta da parvoíce sem deixar, contudo, de ter uma porção desejável de sinceridade.

Distantes da vida normal de celebridades, da agenda preenchida e dos contactos profissionais, e em parte afastados dos seus familiares mais próximos, Brydon e Coogan revelam-se numa faceta humorística, tal qual os conhecemos, mas também num outro lado, mais habitualmente “escondido” pelas câmaras. E mesmo que não seja surpreendente, e mesmo que seja obviamente encenado, não deixa de ser curioso ver estas duas figuras estarem no meio de situações mais corriqueiras, que naturalmente não associamos aos famosos. Porque estes dois senhores, que por acaso são dos maiores génios da comédia britânica contemporânea (sendo o primeiro um intérprete regular de várias sitcoms de sucesso da BBC, como Gavin & Stacey, e o segundo o criador do inesquecível Alan Partridge), conseguem, com este filme (e com o original), ultrapassar o legado de todas as suas personagens fictícias… e para isso, eles apenas precisaram de ser eles próprios nestas conversas e nestas viagens deliciosas.

A Viagem a Itália tem uma falsíssima estrutura de documentário (e tudo acaba por denunciar essas pretensões, começando logo pelos planos demasiado limpinhos e por uma découpage muito certinha), mas no lado real da viagem, é difícil conter o deslumbramento visual, perante tantas e tão belas paisagens e locais. E claro, se estamos em Itália, e se em grande parte do filme se fala de outros filmes (e de certos atores em particular), não poderiam faltar divertidas referências ao mundo de O Padrinho. Mas há muito mais para descobrir, e o humor irreverente da dupla de protagonistas compensa a demasiada rapidez em que se processam alguns dos elementos da narrativa de que fazem parte.

O humor é a base de A Viagem a Itália, e raras são as ocasiões em que nos podemos maravilhar com um filme por uma razão tão simples como esta: conversas parvas e aleatórias. Porque esta é mesmo uma das boas comédias do ano, e uma das apostas mais inesperadas a estrear nas nossas salas. Seria bom encontrar mais filmes assim nessas condições apropriadas, e não conferir a este outro tipo de humor o destino mais vulgar a que costuma ser sujeito (o da entrada direta no home video, ou em muitos casos, o puro desprezo em qualquer formato no mercado nacional – como aconteceu ao filme que Steve Coogan fez com o seu personagem mais conhecido, Alan Partridge: Alpha Papa). Porque é no seu lado mais simples que reside a sua maior originalidade, numa segunda investida que se revela ser vencedora, tal como foi a primeira. É para rir e chorar por mais.

8/10


In http://www.espalhafactos.com/2014/11/20/a-viagem-a-italia-pratos-deliciosos-e-gargalhadas-imparaveis/
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PostPosted: Wed Dec 03, 2014 11:25 pm    Post subject: Reply with quote



Intenso e realista drama prisional (os minutos iniciais assemelham-se totalmente a um documentário), «Riot in Cell Block 11» é uma pequena curiosidade cinematográfica realizada por Don Siegel (que voltaria a falar da vida atrás das grades no clássico muito mais famoso, «Os Fugitivos de Alcatraz»), sobre os meandros e negociatas do sistema judicial, a partir da história de um motim gerado por um grupo de condenados, que apenas pretendem ver as suas exigências concretizadas, além de quererem chamar a atenção dos meios de comunicação social. Bem filmado e dirigido, com uma precisão minuciosa na construção da tensão, o filme consegue ser um retrato intimista de uma realidade questionável, sobressaindo essas intenções, apesar de algumas cenas serem mais frágeis do que outras. Não marcou a sua época e hoje é um título praticamente desconhecido, mas consegue ser desconcertante na forma como capta a vida de uma prisão sem pozinhos de perlimpimpim.

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PostPosted: Sat Dec 27, 2014 7:21 pm    Post subject: Reply with quote



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Mr. Turner: a vida e a época de um pintor pelo olhar de Mike Leigh

Timothy Spall protagoniza este biopic pouco convencional, num desempenho que lhe valeu o prémio de Melhor Ator na ultima edição do Festival de Cannes. Mr. Turner é o relato preciso dos últimos 25 anos de vida do pintor Joseph M. W. Turner, que testemunhou grandes mudanças na sociedade britânica do seu tempo, que acabaram por influenciar o seu trabalho, e o rumo cada vez mais atribulado da sua vida. É uma das estreias da semana, e um dos melhores filmes do ano.

Um artista irreverente, que acabou por ser vítima das mesmas circunstâncias que o tornaram célebre no meio cultural britânico: presenciando uma época marcada por várias transições sociais (e mesmo tecnológicas), acompanhamos as deambulações de Joseph Turner entre críticos e admiradores da sua arte, a conviver com o seu amado pai (o maior de todos os fãs) e com a governanta (com a qual mantém uma obscura relação). Paralelamente, vemos a vida de Turner fora de circuitos tão íntimos, e passamos para a sua importância na vida social da época. Mas o que sobrevive mais na nossa cabeça: a psicologia complexa desta personagem, ou as suas jogadas estratégicas para conseguir sempre vencer, e dar nas vistas entre os seus pares?

Turner movimenta-se entre todas as classes da hierarquia para se “formar” como personalidade de elevada importância, obtendo um grande sucesso entre as elites cultas. Mas a fama não irá impedir que ele seja alvo de algumas maledicências injustificadas e de um certo desprezo, numa sociedade pontuada pela importância do status e das modas, e que tenta impedir a inevitável decadência da sua estrutura. E aí, e tal como acontece com todos os seres humanos, torna-se um indivíduo pequeno, frágil, que não consegue escapar às partidas da existência… mas ao contrário de tantos outros, Turner deixou um incrível legado histórico – legado esse que levou o realizador a querer fazer este filme.

São duas décadas e meia de quadros, de ideias, de aspirações, de paixões fulgurantes e de grandiosos aplausos, que tão facilmente desapareciam como voltavam a surgir – algo que podemos constatar, por diversas ocasiões, neste filme de cariz biográfico. Mas apesar de estar enquadrado nesse género, a narrativa e a direção do veterano Mike Leigh (presença constante de Cannes, onde arrecadou a Palma de Ouro pelo drama Segredos e Mentiras, há quase vinte anos) fazem com que nunca se caia no mais banal fio condutor cronológico, problema fundamental dos filmes “baseados em personalidades reais” mais típicos. Sem floreados e indo direto ao assunto, aproveitando os magníficos atores e uma maravilhosa fotografia, Mr. Turner apresenta-nos esta personagem sem a tornar simpática, acessível ou até, mesmo, “cinematográfica”.

E é talvez aí que está o maior fascínio do filme, ou seja, na maneira como não nos mostra nada de acutilante. Mr. Turner é um filme com uma seca, fria e estruturada auto-contemplação, que passa pelos quadros do autor e pela sua visão do mundo (e de como os dois lados se colidem, quando a realidade influencia a sua obra artística), sem querer causar grandes estímulos sensoriais. E por causa disso é que a obra está a receber opiniões tão polarizadas nos dois lados do Atlântico – porque se “reduz” a uma vida e a um estilo fechado e objetivo de mostrar essa vida em cinema.

Mas de facto, vale a pena descobrir Mr. Turner, e mais do que isso, deixar que a história nos leve para os caminhos que ela planeou. Porque é simples sem deixar de ser singular, e um belíssimo filme que trabalha muito bem as relações humanas de uma época, e um certo sentido de classe muito restrito à sociedade inglesa, pegando, ao mesmo tempo, em valores universais com os quais qualquer um de nós se consegue identificar, algo patente nas cenas em que Turner é alvo do escrutínio dos seus pares, do ódio de alguns e da adoração desmedida de outros tantos, à medida que se torna uma figura da socialite britânica e, também, uma figura que faz os temas de conversa de café dessa mesma elite.

E Timothy Spall é impecável por conseguir transmitir toda uma personalidade distinta do conformismo geral, a que está submetida a elite, que se encerra numa redoma de falso prestígio e credibilidade, como se pudesse fazer tudo o que quisesse dos artistas que dela precisam para encontrarem os seus mecenas e o tão ambicionado pontapé de saída para o reconhecimento cultural. Joseph Turner era uma figura distante e, ao mesmo tempo, próxima dessa redoma, aproveitando-se dela para os seus propósitos… e acabando por ser negativamente influenciado pela mesma – testemunhamos isto ao longo do filme, também.

Mr. Turner é um grande filme por não parecer ser um grande filme. Porque é um biopic que não é um biopic como imaginaríamos que fosse (e como o trailer dá a entender), e porque não reduz a sua figura central a uma máscara única, superficial e fácil, como a maioria dos filmes biográficos desta era moderna. Grande parte do filme vive dos silêncios e de diálogos que, à partida, alguns espectadores poderão considerar “monótonos”, “inúteis”, “pouco imaginativos”. Mr. Turner tem muito mais do que isso, e transmite muitas coisas naquilo que, aparentemente, não nos está a dizer, e que se encontram gravadas na delicadeza poética das suas imagens. Eis a grandeza deste filme, uma ótima escolha para encerrar este último mês do ano.

9/10


In http://www.espalhafactos.com/2014/12/25/mr-turner-a-vida-e-a-epoca-de-um-pintor-pelo-olhar-de-mike-leigh/
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rui sousa



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PostPosted: Sat Dec 27, 2014 8:31 pm    Post subject: Reply with quote



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Mamã: voando sobre a loucura das relações humanas

Xavier Dolan regressa, pela segunda vez em 2014, às salas nacionais. E, desta vez, é com Mamã, um filme muito peculiar sobre a relação não menos invulgar entre uma mãe e o seu filho problemático. Este é um dos acontecimentos mais marcantes da reta final deste ano cinematográfico.

Uma mãe viúva, desenrascada e sem papas na língua, e o seu filho de 15 anos, imparável, carismático e violento, num Canadá com o seu quê de distópico (Dolan insere, numa narrativa realista, uma dimensão social fictícia, que acabará por criar uma outra perspetiva em certas situações da história), protagonizam uma história de sobrevivência na vida mundana, dominada por números, rótulos e burocracias, e que cada vez menos pode ser associada com a palavra “Humanidade”. No caminho ainda conhecem uma vizinha caricata e vivem uma série de questões que os tentarão ajudar a enfrentar o caos… ou talvez não.

Antes de partirmos para a análise de Mamã, há um dado curioso que convém relembrar: o filme foi distinguido com o (para alguns, sacrílego) Prémio Especial do Júri do Festival de Cannes, a meias com Jean-Luc Godard e o seu Adeus à Linguagem. E é clara a intenção irónica e paradoxal que pode ser retirada desta ocorrência, se compararmos as duas entidades em causa. Godard, cineasta de mérito do “antigamente”, aplaudido por gerações e por vários sectores da crítica especializada, vive agora da fama de conquistas longínquas, mantendo uma certa postura (tanto odiável como adorável) que defende que montar fragmentos aleatórios de vídeo num programa com menos qualidade que o Windows Movie Maker é cinema (e o trailer desse novo filme mostra como o mesmo deve fazer jus a esta ideia estereotipada que ganhámos do cineasta nos últimos anos).

Já Xavier Dolan, jovem realizador high-tech, frenético e ultra-pop, melhora de filme para filme, tornando-se um autor cada vez mais consistente e coerente. E gostando-se ou não do seu trabalho (por estes lados, só começámos verdadeiramente a apreciar as suas investidas com Tom na Quinta, filme que antecedeu Mamã – uma muito interessante abordagem psicológica que vai mais além do puro hipsterismo que começou por caracterizá-lo), há que admirar a forma como Dolan se tem imposto, em tão tenra idade, como um realizador que gera burburinho cinéfilo. Isso causa opiniões diversas, e um sincero sentimento de inveja por parte do autor destas linhas.

E sem ter uma certa formação cinéfila que, para algumas mentes mais restritas mas muito pós-modernas, só pode ser a única adequada para quem se quiser tornar num “verdadeiro” cineasta (formação essa que implica gostar e idolatrar um número limitado de realizadores, cuja presença fica sempre bem em qualquer lista que elege os “melhores de todos os tempos” – e um deles, claro, é Godard – e incluir sempre referências óbvias ao trabalho desses ícones do cinema em qualquer filme que seja elaborado – o que confere status e credibilidade intelectual), Dolan conseguiu reunir o agrado de algumas elites, como também, de uma parte das massas, através de uma série de influências dispersas e diversificadas – e não, o trabalho do senhor Jean-Luc não se encontra no meio delas.

Diz-se que só se consegue escrever um bom livro depois dos 40, mas agora não sabemos se isso poderá mesmo ser verdade na questão do cinema, ou pelo menos, com este caso em particular. Porque apesar de algumas jovialidades notórias, em termos visuais e psicológicos, Mamã sobrevive no nosso imaginário como uma história perfeitamente adulta, em que os artifícios estéticos mais não são que um acompanhamento para uma narrativa que tem os pés bem assentes na terra.

Parece impossível, aliar infantilidade com seriedade, atribuindo a mesma importância a ambas as partes (e fazendo com que estas se influenciem mutuamente)? Nem por isso, e Mamã vence não só por causa desses fatores (como também pelo uso do formato de ecrã 1:1, idêntico ao das imagens do Instagram – não, não é nenhum defeito da projeção, caros leitores! -, cruzado com o cinematográfico 16:9, que tem um significado simbólico), mas por conseguir funcionar muito bem, tanto na sua estrutura como no seu efeito emocional. E mesmo que essas emoções pareçam demasiado plásticas, artificiais, “fofinhas”, elas têm um fundo social, e familiar, muito próprio e convincente.

Além disso, Dolan concilia uma montagem bem ritmada (e que se adequa perfeitamente a cada momento do filme e às reações que devemos retirar das suas personagens e das atitudes que tomam) com interpretações brilhantes (tanto Anne Dorval, a mãe, como Antoine-Olivier Pilon, o filho, são perfeitos nas suas composições e na interação necessária para a eficácia das mesmas), incluindo pequenas situações típicas do quotidiano com outras, mais desconcertantes, num tipo de história que já vimos muitas outras vezes antes – mas a abordagem dolaniana leva-nos a querer ver, de novo, aquilo que já conhecíamos (ou que pensávamos conhecer) tão bem.

Mamã é um filme característico do cinema de Xavier Dolan no lado socialmente moderno das suas personagens, e na excentricidade com algo de pimba e de pop que as une, movidas pela velocidade estonteante dos novos modelos de relações humanas provocados pela tecnologia. Mas neste filme, procura-se também explorar a atribulação dos gestos mais simples, e de demonstrar como as coisas que tomamos como lineares e objetivas podem possuir uma outra face, aterradora, inesperada e até desumana, que pode destruir todo um percurso de vida.

Neste processo de pura loucura humana (e o final, cujas intenções libertárias nos fez lembrar, em parte, o desfecho de Voando Sobre um Ninho de Cucos), parece que só resta continuar pacientemente à espera da felicidade, e da concretização dos sonhos… mesmo que a vida nos faça dar uma volta tão grande que nos impossibilite, para sempre, de concretizar qualquer desejo. Um filme notável e com qualquer coisa de memorável, que suscita um outro tipo de reflexão pertinente sobre todos nós, sem perder qualquer tom de universalidade.

9/10


In http://www.espalhafactos.com/2014/12/26/mama-voando-sobre-a-loucura-das-relacoes-humanas/
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PostPosted: Thu Jan 29, 2015 10:01 pm    Post subject: Reply with quote



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Ritmos existenciais

‘Whiplash – Nos Limites’ é um olhar distinto e imaginativo sobre o mundo da música e dos seus bastidores.


Uma das boas surpresas de janeiro encontra-se num filme que tinha tudo para ser banal e passar despercebido. Whiplash – Nos Limites consegue ser muito mais do que uma história sobre a relação entre um rapaz aspirante a baterista profissional, e o seu inescrupuloso mentor, um especialista na matéria que utiliza métodos muito pouco ortodoxos (e excessivamente violentos, acrescentamos) para incutir vários ensinamentos profissionais no seu grupo muito seleto de estudantes. É uma jornada única, que envolve o choque entre duas pessoas em tudo diferentes, mas que estão ligadas por algo em comum: uma gigantesca paixão pela música, que os move e faz pulsar, constantemente. Tanto para o bem, como para o mal.

A influência mútua é notória no modo como o professor (o excecional J. K. Simmons, nomeado também pela Academia) age sobre o seu aluno provocando atitudes que, movimentadas pelas batidas, pelos treinos incansáveis e as múltiplas atuações, terão consequências na vida deste jovem e de todos aqueles que o acompanham. Esta é a face mais bem explorada de Whiplash e que distingue o filme de tantos outros títulos que ambicionaram trabalhar histórias com o mesmo modelo dramático. Porque enquanto muitas dessas outras narrativas acabaram por resvalar para dramatismos “piegas” ou formalismos incoerentes, Whiplash oferece o inesperado, ou pelo menos, aquilo que seria menos óbvio, em cada passo da evolução psicológica das personagens. Essa espécie de decadência que, ao mesmo tempo, pouco tem de decadente, é construída com os efeitos fenomenais da música e manuseada com uma construção visual e cinematográfica muito apelativa (dado o contexto). Damien Chazelle, o realizador que reciclou a sua curta homónima aplaudida no Festival de Sundance para elaborar esta longa, pega nas suas próprias experiências na música para nos proporcionar um filme dotado e encantado, que versa sobre a transformação extrema de um indivíduo em situações que podem revolucionar a sua existência.

No entanto, é importante não confundir a veracidade do material ficcional com o realismo das práticas musicais retratadas. Muitos artistas poderão torcer o nariz a esta narrativa, se tiverem em mente os seus próprios métodos e ao compreenderem, de imediato, que as aulas do professor Fletcher não passam de uma pura e absurda teatralização. E o objetivo de Chazelle não é tanto o de seguir de forma realista uma abordagem aos espaços da profissionalização na música, mas antes o de captar, com a máxima potência, toda a catadupa de emoções descontroladas que se vivem nas andanças por estes mundos.

Para isso é preciso, claro, tornar o mais humano possível essa série de regras restritas à música, o que coloca em risco a eventual notoriedade documental que esta ficção poderia ter. Mas seria essa uma condição necessária para que Whiplash conseguisse provocar tanto entusiasmo? Não, porque a sua força está no trabalho dos atores, na relação entre personagens, na detalhada e subtil realização. E também em alguma imaginação que se revela em certas cenas que mostram o espetáculo musical com uma densidade cinematográfica ímpar.

Whiplash é um dos poucos filmes modernos que sabem provar como a ligação entre o cinema e a música sempre foi fundamental e de que não se pode encarar nenhuma das duas artes como simples função de “acessório” da outra. E numa era de sofisticadas tecnologias cinematográficas, que trocam as maiores complexidades dos meios tradicionais por uma pompa visual que confunde o valor de uma narrativa com o lucro em pipocas e refrigerantes, é reconfortante encontrar um filme como este, que aproveita ao máximo todas as suas potencialidades.

4/5


In http://maquinadeescrever.org/2015/01/29/ritmos-existenciais/
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PostPosted: Wed Feb 04, 2015 2:06 pm    Post subject: Reply with quote



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O dinheiro e o petróleo têm a cor do sangue

Recuperando referências do cinema americano dos anos 70 e 80, ‘Um Ano Muito Violento’ é uma história de crime e poder que sobressai pelo grande trabalho de interpretação.

Depois de um olhar particular sobre a crise financeira recente demonstrado em Margin Call – O Dia Antes do Fim, e de um poético relato de sobrevivência em alto mar com Quando Tudo Está Perdido (que tem uma incrível prestação de Robert Redford), J. C. Chandor regressa com um filme distinto dos anteriores, mas que não esquece algumas das suas características fundamentais, sobretudo a formidável direção de atores. É um cinema preocupado com as suas funções mais ancestrais: contar uma boa história e explorar, através dela, as múltiplas dimensões da condição humana. E aqui vemos, em todo o seu esplendor, as consequências de uma série de armadilhas provocadas pelo choque entre interesses pessoais e a ambição do poder.

Já foi várias vezes referido que Um Ano Muito Violento deve muito ao legado de realizadores como Sidney Lumet ou Sydney Pollack, e ao modelo de filmes inesquecíveis que polvilharam o imaginário norte-americano nos anos 70 e 80 – e as referências muitas vezes feitas a Os Incorruptíveis Contra a Droga são facilmente identificáveis. No entanto convém salientar que, apesar de ser uma homenagem à cinematografia dessa época, o filme sobrevive por si próprio graças ao equilíbrio entre os elementos da narrativa e os simbolismos construídos a partir dos diálogos, das situações e dos conflitos.

Contando uma história urbana fortemente influenciada pelas alterações das relações sociais (entre o protagonista, a sua mulher e os seus clientes) e da cadeia hierárquica de poder que as envolve, Um Ano Muito Violento é uma interessante proeza que se orienta entre o cinema clássico e a intemporalidade dos valores e ideias que são postos em confronto à medida que Abel Morales (Oscar Isaac) acentua uma rutura imparável com a sua mulher Anna (Jessica Chastain) e também com todos os amigos e inimigos que encontra pelo caminho, num percurso que se faz naquelas ténues linhas que separam o bem do mal.

É um filme sobre petróleo. Mas mais do que isso, um retrato de um casal que vive de esquemas e negócios pouco fiáveis para garantir o seu bem estar, numa América conturbada e em risco. Mas Um Ano Muito Violento tem essa particularidade de ser o testemunho ficcional de um ano (1981) marcado por uma série de brutais confrontos entre o crime e a Lei. Alguns desses casos trágicos e sangrentos são-nos apresentados, de forma muito ténue, mas também eficaz, graças a algumas indicações difundidas pelos meios noticiosos que encontramos no filme.

Outros dramas coletivos retratados fazem parte do próprio desenrolar dos acontecimentos ligados às histórias das personagens – e não se encontram, apenas, nos momentos de maior tensão, como também no desespero provocado pelo quotidiano, pela correria do dia a dia (e vale a pena observar as várias “corridas” que nos mostra o filme, porque também estabelecem uma espécie de ligação comum). Os mais simples gestos dos atores escondem assim uma outra face que liga elementos da trama com a realidade norte americana da época. Não nos esqueçamos ainda importante contribuição da banda sonora genial de Alexander Ebert. Foi graças às suas composições que Quando Tudo Está Perdido ganhou muito do seu impacte emocional, e o mesmo acontece agora em Um Ano Muito Violento.

Apesar de algumas incoerências na estrutura da narrativa, Um Ano Muito Violento é um drama empolgante e bem equilibrado que chama atenção, mais uma vez, para a versatilidade do realizador, frequentemente esquecido entre a opinião pública e os cineastas que lhe são contemporâneos. Este é mesmo um grande filme sobre o lado negro da vida mundana.

4/5


In http://maquinadeescrever.org/2015/02/04/o-dinheiro-e-o-petroleo-tem-a-cor-do-sangue/
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A pintora e a inveja desmedida de um falhado

O novo filme do realizador de “Sweeney Todd” e “Marte Ataca” só tem alguma excentricidade na história bizarra e verídica que relata, já que, de resto, não encontramos ali muitos dos ingredientes habituais no imaginário de Tim Burton.

Há em Tim Burton uma faceta que poucos parecem reconhecer, ou que não tem sido devidamente valorizada na sua filmografia: a de um retratista dos solitários, dos génios criativos, ou até daqueles que têm só a ideia de que são geniais. Todos eles cabem no universo Burtonesco, sejam inspirados em pessoas de “carne e osso”, sejam puras criações do realizador. E em Olhos Grandes, encontramos tanto a mulher talentosa que se esconde do mundo, como o homem que quer ser aclamado graças ao trabalho dos outros – e, ao que parece, são ambos figuras reais.

É a continuação de uma trademark reconhecível. Burton está muitas vezes preocupado não só em recuperar figuras estranhas e obscuras recordadas pela cultura popular (relembremos Ed Wood, que é ainda o seu melhor filme), como também em criar as condições necessárias para as personagens conseguirem adquirir o seu próprio espaço, físico e psicológico, dentro da aparente normalidade conformada do quotidiano (vale a pena rever Eduardo Mãos de Tesoura, e a luta de alguém, que a comunidade toma por “aberração”, por conseguir integrar-se no meio que o acolhe).

Podemos ainda mencionar o Willy Wonka de Charlie e a Fábrica de Chocolate, personagem excêntrica que esconde, entre tantas manifestações do seu ego e do seu império achocolatado, dilemas e traumas do passado que nunca conseguiu resolver. Olhos Grandes segue a linha desses filmes e de tantos outros ao pegar numa figura fechada em si mesma, mas que encerra no seu percurso uma história surpreendente, que ilustra bem o poder da fama e do mediatismo – quando são atribuídos a quem não os merece. Mas não há nada na abordagem visual, nem da estrutura da história, que nos faça pensar em Tim Burton.

É uma narrativa mais convencional, daquelas que começam logo por nos avisar que estamos prestes a contemplar uma história baseada em factos verídicos. Num mundo fofinho, a protagonista (Amy Adams) perde a inocência e a timidez perante a sociedade ao ser vítima de uma fraude arquitetada engenhosamente pelo seu marido (Christoph Waltz). É isso que Olhos Grandes aborda em primeiro lugar: a relação atribulada entre estas duas personagens, através das manobras egoístas do homem, e da incapacidade da mulher talentosa de abandonar aquele espaço fechado, em que pinta quadros para ficarem, depois, sob a assinatura de uma outra pessoa.

Mesmo que não pareça ter a marca de Tim Burton, Olhos Grandes só poderia ser por ele realizado. Pelas características psicológicas e também pela oposição que é vincada entre o mundo alegre das aparências e o outro lado, o da perda da inocência e do domínio do “mal”. E Amy Adams é não só deslumbrante neste papel (um dos melhores que interpretou nos últimos anos), como também adequadíssima para ele mesmo. Já que falamos de olhos quando lembramos a pintura de Margaret Keane, é interessante notar como o olhar da atriz nos transmite tudo, fazendo grande parte do conteúdo emocional do filme. Um olhar perdido, desesperado, tímido, e que é o único elemento necessário para conseguirmos entender toda a evolução da personagem.

Há tanto de comédia como de tragédia nesta história, se bem que nem uma nem outra conseguem ser muito bem trabalhadas. São os atores que salvam o dia, não só Adams e Waltz, como também toda a série de secundários que os rodeiam. E Tim Burton consegue impor as suas marcas através de uma realização que capta, com o auxílio de alguns engenhos criativos, pequenos pormenores do espaço cénico e narrativo.

O final é repentino, mas o filme, apesar de tudo, consegue ter alguma inspiração, e não estar sempre subjugado às intenções massificadas e convencionais do argumento. E além de uma inacreditável história de oportunismo e da incredulidade dos media, Olhos Grandes analisa levemente a noção de arte e a banalização industrial que se pode proporcionar com os objetos artísticos, que se tornam “produtos” de mercado devido às exigências gananciosas de alguns indivíduos. É uma obra à la Tim Burton sem aparentemente mostrar indícios disso, e que não está, felizmente, “ao nível” dos seus piores filmes.

3/5


in http://maquinadeescrever.org/2015/02/26/a-pintora-e-a-inveja-desmedida-de-um-falhado/
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PostPosted: Fri Mar 13, 2015 12:13 pm    Post subject: Reply with quote



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NSA is watching you

Vencedor do Óscar para Melhor Documentário, ‘Citizenfour’ mostra os bastidores do caso Edward Snowden, ligando uma série de factos impressionantes sobre o gigantesco “Big Brother” da vida real.

Num dos primeiros episódios da fabulosa série Sim Senhor Ministro, o protagonista Jim Hacker depara-se com um problema que poderá ser fatal para a sua própria carreira: ele quer criar uma base de dados com ficheiros sobre todos os cidadãos ingleses. E quando a opinião pública começa a encurralar o ministro, acusando-o de que esta criação só servirá para vigiar a vida de toda a gente, Jim defende que cada pessoa possa ter acesso ao seu ficheiro, impedindo que o mesmo seja consultado por terceiros. Mas o conselheiro do ministro, Humphrey Appleby, faz tudo para que Jim não consiga instituir a sua ideia.

O Ministro só tem duas hipóteses: deixar que o sistema se apodere dele (tal como aconteceu com os seus antecessores) e que os seus valores sejam derrubados pela força da burocracia, ou jogar com as estratégias de Appleby e dar a volta ao esquema interesseiro por ele criado.

Curiosamente, este episódio intitula-se Big Brother, e o papel de Jim Hacker nessa história rocambolesca faz-nos lembrar, em parte, o de Edward Snowden. Membro do sistema da NSA, ele conseguiu desmascarar uma parte dos processos muito duvidosos de espionagem dessa agência norte-americana, ao revelar vários dados e ao contar todo o seu esquema de funcionamento através da sua própria experiência. Snowden decidiu libertar-se do sistema para poder atacá-lo da melhor forma, e de facto, continuamos a sentir ainda hoje, os efeitos conturbados dos primórdios desta história com a mesma intensidade. Porque o tema não perdeu atualidade, e só ganhou ainda mais relevância com o passar de tão pouco tempo, desde que tudo aconteceu.

O filme de Laura Poitras cumpre um exercício de “exploração dos bastidores” da polémica, desde os primeiros encontros com Snowden até às maiores controvérsias geradas pela divulgação de informações sobre a NSA (como por exemplo, o caso de uma rutura diplomática entre os EUA e a Alemanha). Mas a acrescentar a tudo o que já sabíamos, que acompanhamos como se estivéssemos a fazer uma revisão da matéria dada, Poitras acrescenta outros dados insólitos, e atribui ao caso uma autenticidade superior – graças ao elevado realismo da câmara, da sólida construção da “narrativa” documental, e da exposição de vários pontos de vista sobre as consequências das ações de Snowden.

E se a ideia de vigilância em massa não é, somente, uma preocupação relevante para a atualidade, há em Citizenfour um lado ancestral e terrivelmente perturbante que demonstra uma atitude intrinsecamente ligada à noção de Poder. Tudo o que vemos no ecrã poderia ser de um filme de ficção científica futurista e orwelliano – mas tal como nos avisa Snowden a certa altura, nada do que nos é revelado (ou relembrado) neste documentário é ficcional. E por isso, Citizenfour é um documentário importante para os tempos que correm, mas que pega em temas, e medos, que continuarão a ser marcantes e perturbantes para a Humanidade, durante muitos e muitos anos.

Contudo, não são só os factos que fazem esta polémica, e por isso é que a visão de Poitras se torna mais interessante que todas as reportagens e investigações que foram já feitas sobre a NSA e Edward Snowden. A dimensão humana destas figuras cibernéticas é explorada com detalhe e precisão, o que nos faz entender os contornos do caso com outra perspetiva. Nisto incluímos o medo (as cenas que demonstram a paranóia de Snowden são algo insólitas) como também o sentimento de exclusão que o protagonista sente, já que não sabe se, alguma vez, poderá voltar a ver a família e a sua companheira – ou se alguma vez, a NSA os utilizará para chegarem a si.

O percurso do caso mostra-nos não só a parte do “making-of”, como também de todas as etapas, avanços e recuos que o caso viveu. Sentimo-nos próximos de Snowden, das suas hesitações, do seu medo constante, do constante dúvida sobre o que acontecerá daí para a frente. O futuro é sempre incerto para este homem, mas não há dúvida que, graças a ele, moldámos o nosso próprio pensamento, e a opinião pública mudou e começou a questionar estas máquinas de vigilância e o perigoso papel que podem ter para as próximas gerações.

Vale a pena voltarmos a pensar nas questões do filme, que agora, se tornaram tão “corriqueiras” – mas que não perderam nada do seu tom assustador e maquiavélico. Evitando a paranóia demonstrada por algumas personalidades que participam no filme, é nosso dever conhecer, pelo menos, algumas das organizações que pretendem bisbilhotar a nossa vida, através de esquemas construídos de uma maneira que ultrapassa a nossa própria imaginação (porque esse esquema entrou, de forma profunda, nas raízes do nosso simples e inocente quotidiano). Elas estão mais perto do que parece, como comprova este provocante ataque às instituições do poder. Um filme cuja descoberta é essencial para a compreensão desta era digital, dos seus problemas e das suas incríveis e chocantes ilusões.

4/5

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PostPosted: Fri Mar 20, 2015 3:58 pm    Post subject: Reply with quote



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Voar entre a guerra e a paz

O canto de cisne de Hayao Miyazaki tem uma história poética baseada numa personalidade real. Uma obra prima que é um dos mais surpreendentes e debatidos filmes dos estúdios Ghibli.

Um ano depois de ter sido apresentado pela primeira vez em Portugal, numa antestreia esgotadíssima promovida pela Monstra, As Asas do Vento chega finalmente ao circuito das salas, e por um período muito limitado. O atraso desta estreia justifica-se através de uma série de complicações de “bastidores” (o filme esteve inicialmente ligado a uma distribuidora, mas depois ficou sem nenhuma durante algum tempo). Contudo, se há filme que urge ser descoberto em sala, e não no ambiente confortável do lar, é este mesmo. E essa sessão de antestreia ficará na minha memória como uma experiência inesquecível – como para muitos tem sido memorável a descoberta desta maravilha animada.

Há poucos realizadores que, na hora da sua despedida, apresentem um trabalho único e distinto que marque uma diferença significativa face ao percurso que até então construíram. Hayao Miyazaki é um deles, e As Asas do Vento tem tanto de filme fantástico como de histórico, militar, romântico e poético. E a narrativa balanceia suavemente entre todos esses géneros, entre todas as personagens que nos dá a conhecer, e todas as magníficas ideias visuais pintadas pelo realizador.

As Asas do Vento tem sido alvo de elogios e, por outro lado, de críticas absolutamente demolidoras. É um filme que divide opiniões, algo que não surgiu, de uma maneira tão vincada, em outros projetos dos estúdios Ghibli ou noutros filmes de Miyazaki. Sendo baseado na história do engenheiro de aviões Jiro Horikoshi, As Asas do Vento recria as preocupações desta personalidade através da História do Japão, e de um visual que deve muito ao universo fantástico que tão bem caracteriza Hayao Miyazaki. Contudo, este é o seu filme mais sincero, mais complexo, e provavelmente, mais adulto.

E é talvez por isso que muitos não tenham lidado com igual entusiasmo perante esta última investida do mítico realizador: porque Miyazaki não teve receio de “crescer” e abandonar o mundo de sonhos surreais que alimentou durante tantos anos, com inúmeros filmes e personagens emblemáticos (é impossível não citar O Meu Vizinho Totoro ou A Viagem de Chihiro). Mas na verdade é de sonhos que é feito este filme…Só que são outros, daqueles que construímos quando somos confrontados com a realidade, a tragédia e a dureza da vida mundana, que estão sempre presentes. E essa junção entre as ambições de Jiro, a sua vida e as circunstâncias em que se encontra no seu país, faz de As Asas do Vento um dos filmes mais tocantes e emocionantes dos estúdios Ghibli.

Se for desta que Hayao Miyazaki se despede de vez (porque esta não é a primeira “ameaça”), não poderia haver uma melhor maneira de fechar uma brilhante carreira. É um adeus que pode provocar lágrimas, e revela mensagens marcantes que o realizador não expressou em filmes anteriores com tanta força e intensidade. Falamos, por exemplo, do apelo à paz, do elogio do amor e da importância atribuída à criatividade, à imaginação e aos sonhos.

Porque se “o sonho comanda a vida”, o cineasta pede-nos que, com ou sem ele, continuemos sempre a sonhar. E por isso, As Asas do Vento é um monumento ao encanto, e a razão pela qual várias gerações têm algo a agradecer a Miyazaki. Porque foi ele que criou parte dos nossos sonhos, e que alimentou o nosso crescimento. Um daqueles filmes para guardar no coração.

5/5


In http://maquinadeescrever.org/2015/03/20/voar-entre-a-guerra-e-a-paz/
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PostPosted: Fri May 08, 2015 12:52 pm    Post subject: Reply with quote



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O declínio do teatro da vida

Uma interpretação singular de Al Pacino eleva uma adaptação cáustica e desorientada de “A Humilhação”, um romance homónimo de Philip Roth.

Eis uma história de ascensão e queda de um artista, como tantas outras que seguem o mesmo caminho, e que traçam o mesmo percurso psicológico de uma personagem decadente e perdida no meio das suas ilusões. Hollywood tem sido perita em filmar esse tipo de situações dramáticas, tão inerentes ao mundo do star system criado pela indústria (basta citar os exemplos ilustrativos dos filmes O Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder, ou Corações na Penumbra, de Richard Brooks).

Mas o que propõe Philip Roth – e o realizador Barry Levinson – é algo diferente, pelo menos, em termos formais, numa variação desses temas clássicos que dizem tanto ao cinema americano. A Humilhação é um curioso drama, com algo de humorístico, que joga com os problemas de Simon Axler, um ator instável que vê o seu talento dissipar-se e uma depressão aguda a surgir.

Por causa de tudo disso começa a confundir pessoas e aspetos da sua vida, misturando ficção, mentira e realidade sem ter noção dos limites de cada uma delas – e essa confusão irá passar, naturalmente, para o espectador. Ele é assim um ator encurralado pelos seus próprios fantasmas, que se está a tornar, ele próprio, num fantasma “de carne e osso”, que deambula pela vida real sem saber que personagem, ou que atitude, deve tomar em cada situação.

À medida que novas personagens excêntricas surgem na vida do protagonista (Al Pacino), e enquanto a linha entre a verdade e a ilusão se torna cada vez menos distinta, Axler “luta” com os seus demónios sem conseguir, alguma vez, livrar-se deles: um desconforto psicológico constante que afeta o filme e a sucessão de acontecimentos, mais ou menos credíveis, que vamos testemunhando. O filme constrói uma personagem complexa que personifica as ambiguidades do mundo do espetáculo e das angústias de quem dele faz parte.

Há alguns anos que não víamos Al Pacino assim no ecrã, a interpretar com inteira liberdade uma personagem totalmente adequada ao seu talento, e a justificar o estatuto de ícone americano perpetuado pelas décadas finais do século XX. E é o que dá um certo toque memorável a The Humbling: a sua personagem, e também as restantes interpretações (com especial destaque para Greta Gerwig e Dianne Wiest) que contribuem para a contínua confusão da intriga e da mente do protagonista.

É, portanto, nos atores e na maneira como utilizam os maravilhosos diálogos do argumento (que falha por não manter uma coesão entre todos os seus elementos), que se encontra o ponto fulcral deste filme, uma homenagem ao teatro e às relações humanas, em que a existência humana constrói as suas dimensões graças à multiplicidade de papéis que se podem assumir tanto no palco, como também no palco da realidade. De resto, salientar algumas ideias interessantes do veterano realizador Barry Levinson (autor do audacioso Manobras na Casa Branca e do popular Rain Man – Encontro de Irmãos) e de uma curiosa e subtil crítica à forma como, Hoje, todos queremos ser atores e, ao mesmo tempo, espectadores da nossa própria vida.

3 / 5


In http://maquinadeescrever.org/2015/05/07/o-declinio-do-teatro-da-vida/
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PostPosted: Mon May 11, 2015 11:04 am    Post subject: Reply with quote



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A sobrevivência e o pecado

“Força Maior” é um filme que questiona os valores morais do ser humano em situações de risco, e a vulnerabilidade de uma família face aos perigos físicos e psicológicos que a rodeiam.

Força Maior é uma história que coloca em causa a ética e o instinto do ser humano, através de uma situação que, à partida, tinha tudo para ser corriqueira, banal, passageira, e que só poderia ser lembrada posteriormente, apenas, através de muitas fotografias e recordações mais ou menos divertidas, pelos seus intervenientes: a viagem de férias de uma família nos Alpes franceses.

O que há de errado neste quadro? É que há qualquer coisa imprevisível que irá afetar não só a relação entre o casal e os filhos, como também a estadia naquele sítio gelado, mas paradisíaco à sua maneira. É esse elemento, representado por um pequeno, mas fatal, gesto do patriarca da família (que, ao contemplar uma “avalanche”, tem o primeiro impulso de fugir a sete pés), que faz o interesse e a… força maior deste filme, e que é, também, o tema mais acutilante aqui abordado pelo realizador Ruben Östlund.

Força Maior é um filme sobre emoções, sobre afetos, sobre a irracionalidade e a cobardia humanas em frente das maiores e mais perigosas armadilhas. Num mundo repleto de lugares-comuns, de ideias feitas sobre o mundo familiar, eis que chega um filme que tenta dar a volta. A narrativa mostra-nos, como se de um exercício de “what if?” se tratasse, as circunstâncias e os medos que poderiam fazer um ser humano banal agir da pior maneira possível.

Foi isso que entusiasmou a crítica: a temática filosófica, e as consequências que a pequena e instintiva atitude do pai da família provocam, qual bola de neve, em todos os que o rodeiam. Mas se avaliarmos o que o filme em si provoca no espectador, parece que essa questão, tão relevante como perturbadora, que está na génese da narrativa, não foi explorada da melhor forma, tornando-se apenas num “pretexto” para publicitar Força Maior. Isto acontece com muitos filmes, e aqui encontramos, de novo, essa situação: o filme está a encontrar muito do seu poder mediático graças ao próprio mediatismo da opinião pública, cujas dimensões ultrapassam, em larga escala, as simplicidades lineares ilustradas pelo realizador.

No entanto, não é isso que menoriza as qualidades de Força Maior. Tanto os atores como a fotografia são exemplares, mesmo que algumas técnicas demasiado “corretas” e “geométricas” danifiquem o retrato que se pretendia fazer do Homem, ou seja, do Homem como um ser imprevisível, imperfeito e pouco ou nada “correto”. E a tentativa de Östlund, ao querer dissecar a moralidade e os padrões aparentemente restritos das relações humanas, levanta alguns contornos interessantes que nos deixam a pensar – porque depois, é o espectador que acaba por conseguir “completar” o filme, acrescentando-lhe as componentes que lhe faltaram.

3 / 5


In http://maquinadeescrever.org/2015/05/11/a-sobrevivencia-e-o-pecado/
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